segunda-feira, 12 de outubro de 2020

ACCAMTAS

Levantamento inédito revela os impactos da extração ilegal de areia

 


O premiado jornalista Antônio Melquíades Júnior, repórter especial do jornal Diário do Nordeste (CE), do Sistema Verdes Mares, afiliada à Rede Globo, escreveu uma série de reportagens sobre a extração ilegal de areia, fruto de 14 meses de apuração, 5.400 quilômetros percorridos por seis estados brasileiros (antes da pandemia), leitura de mais de seis mil páginas de inquéritos, além de relatórios internacionais, estudos de dissertação e teses de doutoramento de assuntos relacionados ao tema.

Esta série ainda trará dados inéditos no País sobre a exploração de areia. Foram 32 pedidos pela Lei de Acesso à Informação (LAI) para todas as unidades da Federação. A primeira reportagem foi publicada no jornal Diário do Nordeste em 12 de outubro de 2020.



Levantamento inédito revela os impactos da extração ilegal de areia


Escrito por Melquíades Júniormelquiades.junior@svm.com.br  12 de outubro de 2020

https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/regiao/levantamento-inedito-revela-os-impactos-da-extracao-ilegal-de-areia-1.2998781



            Lucrativa e invisível, a Máfia da Areia no Brasil movimenta bilhões em dinheiro, sonega impostos, destrói meio ambiente e ameaça quem denuncia


Legenda: Matéria-prima essencial no desenvolvimento civilizatório e industrial, a areia é também o produto do mercado ambiental mais ilegal no mundo Foto: Thiago Gadelha


             Os faróis cortam a escuridão da estrada de pedras, num zigue-zague pela Caatinga que só sabe fazer quem conhece, está acostumado. Visto de fora, é um caminhão-caçamba; de dentro, é uma caixa de ferro ambulante sacolejando com a sinuosidade e relevo da estrada, pronta para se desmontar ou cuspir alguém pela janela. Ou pela carroceria, onde estão três homens com pás; dentro, o motorista em mais uma madrugada de trabalho até a beira do rio. No retrovisor, um rosário; na cintura, um revólver, porque “o mal vem de qualquer lugar”. Nem sabe se ainda atira, mas na fé “acerta”. Chegamos ao destino. Gira a chave e, finalmente, o barulho infernal do motor respeita o silêncio da madrugada. Os faróis iluminam o alvo:

- Bora, negada, trabalhar!

             Os três homens pulam da caçamba com a mesma naturalidade de um robô que atende a comandos e, sem falar nada, enfiam os pés e as pás no solo e arremessam a areia para dentro do veículo. Em 50 minutos fazem, em média, 350 arremessos cada um até encherem o vazio com três toneladas de grãos. Antes que amanheça, já estão todos de volta à estrada no rumo da cidade. 


Água, ar, areia

         Terceiro recurso natural mais consumido pelo homem no Planeta, depois da água e do ar, a areia é a base do desenvolvimento das civilizações, mas sua exploração desordenada tem deixado um rastro de destruição, mortes e uma incrível escassez, em meio à abundância. Isto porque nem toda areia serve para as construções. Nenhum construtor inveja o deserto do Saara - vistos num microscópio, seus grãos são esféricos. Somente uma assimetria pode permitir um encaixe, portanto, uso para formação de concreto. Em outras palavras, grãos de formatos irregulares que servem para obras. Eles estão no rio, no mar e no entorno.

         Com faturamento estimado entre U$ 200 bilhões e U$ 350 bilhões, a extração ilegal de areia ocupa a terceira posição no ranking de crimes globais, atrás de piratarias e falsificações e do tráfico de drogas. Os dados são do relatório “Crime Transnacional e o Mundo em Desenvolvimento”, a partir de dados da Global Financial Integrity (GFI) com ONU, Interpol, e o pesquisador brasileiro Luís Ramadon.

          Como o ilegal é mais barato, esse mercado se aproveita da falta de fiscalização e da corrupção de alguns fiscais para manter a engrenagem nesse material que, paradoxalmente, é “mais raro do que se pensa”, como diz maior estudo já feito pela Organização das Nações Unidas (ONU) sobre esse mineral.


Investigação

           Esta reportagem é fruto de 14 meses de apuração, 5.400 quilômetros percorridos por seis estados brasileiros (antes da pandemia), leitura de mais de seis mil páginas de inquéritos, além de relatórios internacionais, estudos de dissertação e teses de doutoramento de assuntos relacionados ao tema.

            Esta série ainda trará dados inéditos no País sobre a exploração de areia. Foram 32 pedidos pela Lei de Acesso à Informação (LAI) para todas as unidades da Federação. As idas e vindas das solicitações, desafio à parte, serão conferidas nos próximos dias.

            Durante os meses de apuração, também fizemos levantamento nunca feito por nenhum órgão público fiscalizador federal: um compilado de quem são os CPFs e CNPJs campeões de multas por extração ilegal de areia no País - quando os estados fazem esse registro, embora misturado a outras infrações ambientais.

            No Ceará, na Bahia e no Rio de Janeiro, apontamos a atuação de milícias entre os traficantes de areia, incluindo a acesso a interceptações telefônicas com autorização judicial, evidenciando extorsões para o velho “fazer vista grossa”. Esse mercado é bilionário, por isso quem dele se beneficia não quer ninguém no caminho. Encontramos moradores e até um promotor de Justiça perseguidos e ameaçados pelos traficantes de areia, além de conflitos entre grupos que rivalizam por esse minério do leito dos rios.

            Trazemos o relato de uma ambientalista, moradora de região litorânea, que sofreu atentado por denunciar o tráfico de areia. A nossa equipe também chegou a ser observada. Durante a produção da reportagem, em Camaçari (BA), olheiros do tráfico criaram barricadas para impedir a passagem de curiosos como nós, evidenciando a rede de informações do GDA, o Grupo da Areia. Se uma equipe de fiscalização municipal chega, desarmada, é posta para fora sob a mira de pistolas.

             Enquanto o Meio Ambiente é degradado e o assoreamento causa desastres e mortes nos períodos de cheias dos rios rasos e largos, o tráfico de areia enriquece alguns e mantém uma grande massa de miseráveis, que têm na retirada dos grãos o sustento da família inteira. Excluídos de diversas formas, tornam-se partícipes do “maior crime ambiental no Brasil”, segundo apontam especialistas. São esses miseráveis também os mais punidos nas fiscalizações e apreensões, enquanto quem lucra exclusivamente segue invisível e não é procurado.

             Foram mais de 50 pessoas entrevistadas na apuração, dos mais diferentes lugares do País. Em nem todos os lugares conseguimos chegar fisicamente, mas tivemos o apoio das próprias comunidades, sobretudo quando começou a pandemia da Covid-19. Por WhatsApp, encaminhavam os flagrantes registrados. A quarentena não atingiu quem trabalha na ilegalidade. Os moradores, então, nos auxiliaram nesta reportagem por “não aguentar mais tanto roubo”.

             Para qualquer lugar que olhemos, algo tem areia em sua composição. E a qualidade desta irá afetar diretamente a qualidade daquela.


Mercado ilegal da areia movimenta R$ 13 bilhões por ano no Brasil


https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/regiao/mercado-ilegal-da-areia-movimenta-r-13-bilhoes-por-ano-no-brasil-1.2998788


             O faturamento se refere apenas ao que é fornecido para a construção civil. Construtoras e lojas de material de construção lucram no tráfico que se torna mais rentável que o de drogas. Ilegalidade impõe risco às construções




             Para cada quilo de cimento usado pela construção civil são necessários, pelo menos, outros quatro quilos de areia. É a proporção mínima necessária para a formação do agregado de concreto, base de qualquer edificação. A produção industrial de cimento, contabilizada e regulada mensalmente, é o espelho que reflete a contabilidade do invisível. Enquanto, em 2018, foram produzidas 53,5 milhões de toneladas de cimento no País, o consumo estimado de areia é quatro vezes isso, em torno de 214,2 milhões de toneladas.

             Mas a produção real declarada de areia foi de 76,7 milhões de toneladas. Os 137,4 milhões de toneladas restantes é a quantidade estimada de areia extraída ilegalmente, sem autorização dos órgãos competentes, sobretudo a Agência Nacional de Mineração (ANM). O nível de ilegalidade representa amplos 64,17% de todo o consumo. Convertida em dinheiro, essa produção ilegal chega aos R$ 13 bilhões anuais, um dado inédito obtido pela reportagem.

             O montante acima simplificado é calculado numa complexa matemática que envolve estudos de preços de mercado e produção por IBGE, Caixa Econômica Federal, Sindicato Nacional de Produção de Cimento (SNIC) e Agência Nacional de Mineração. 

             Essa estimativa da ilegalidade é até mais conservadora do que usada pela ONU, que aponta até sete partes de areia para cada parte de cimento. O responsável pelo levantamento mais atualizado é o pesquisador brasileiro Luis Fernando Ramadon, referência internacional nos estudos sobre o impacto da extração ilegal de areia no mundo.

            “É um número surpreendente, mais do que todos os demais crimes ambientais”, diz Ramadon, especialista em Direito Ambiental e mestre em Recursos Hídricos, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Seu interesse no tema começou ao se surpreender com a quantidade de areais ilegais no município fluminense de Seropédica e o esforço no combate pela Polícia Federal, da qual é um agente especial.

            O pesquisador e policial passou a capacitar outros agentes federais no combate à máfia desse minério, mas não sem admitir a complexa missão. “A areia é muito fácil de se pegar. O caminhão para na beira do rio e transporta diretamente para o consumidor. Muitas vezes as construtoras compram esse material sem saber que é ilícita a areia, pois os criminosos usam notas fiscais frias e fazem lavagem de dinheiro em cima da areia. É algo muito forte no Brasil”.


A fragilidade

             Quando Maria Ailda Malveira sonhou acordada com a casa própria, fez um churrasco para inaugurar. Saiu do “de favor”, depois do aluguel e, finalmente, estava num lar para chamar de seu, no município cearense de Horizonte. A doméstica foi uma das beneficiadas, em 2015, pelo programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal, que realiza o sonho da casa própria para pessoas de baixa renda pagarem com suaves parcelas.

             Ficou tão grata que não fez caso de algumas imperfeições nas paredes rebocadas com tinta a cal, ou alguns resíduos soltando na extremidade dos encanamentos. “Tem mais é que agradecer. Tem gente com menos ou nada”. 

            Mas começou a cair uma e outra chuva, a parede foi ficando úmida. Mais que isso, rachaduras começaram a surgir na altura dos encanamentos, como se a água correndo no cano empurrasse a parede, que aos poucos se transformava em grãos, literalmente.

           “Mulher, a minha casa tá se desfazendo”, comentou com a vizinha de porta, que relatou o mesmo. Apenas cinco meses desde o churrasco de inauguração, os moradores do bloco 11 do Minha Casa Minha Vida, no Bairro Diadema, chegaram à constatação de que as casas estavam se desfazendo. 

             No telejornal, Ailda viu que no Rio de Janeiro tinha morador reclamando da mesma situação e acionou a Justiça. Quis fazer o mesmo. “Vou botar pra frente isso, porque tá certo que a gente paga pouco, é R$ 35 por mês, mas o barato pode sair caro e, pelo que a gente vê, é milhões de dinheiro que o Governo paga pra construir”. Quando chegou à agência da Caixa Econômica Federal de Horizonte ouviu que “a gente não tem o que fazer, a Caixa paga pra construtora fazer”. 

             Mãe de duas crianças, com quem mora sozinha desde que o marido foi embora, a doméstica aproveitou um dia de folga das faxinas e colocou cimento nas rachaduras.

             Ailda não está sozinha e, se alcançasse a Justiça Federal, encontraria vários depoimentos iguais ao seu, em denúncias movidas pelo Ministério Público Federal, em Brasília. Pelo menos 230 delas nos últimos três anos, de acordo com a Procuradoria Geral da República (PGR), resultaram em procedimentos. A importância do programa habitacional chamou atenção para o que seria óbvio, não fosse o invisível: a areia de baixa qualidade, quando não imprópria para construção civil, está na base da fragilidade estrutural apresentada pelas residências, algo não restrito a programas públicos, mas recorrentes em construções privadas.

            Caso emblemático no Brasil deu-se em fevereiro de 1998, com o desmoronamento do edifício residencial Palace II, no Rio de Janeiro, matando oito pessoas.

             Embora o laudo não atestasse como causa principal, a perícia atestou a má qualidade do material do concreto entre os itens que apontavam a fragilidade da estrutura.


Rende mais do que o tráfico de drogas

            Segunda posição no ranking de crimes globais, o tráfico de drogas movimenta entre U$ 426 e U$ 350 bilhões, seguido do tráfico da extração ilegal de areia (entre U$ 200 e U$ 350 bilhões), mas o crime ambiental chega a ser mais rentável. Enquanto o negócio das drogas envolve estrutura de laboratório, armamentos e reservas para corromper forças policiais, o tráfico de areia é, com algumas exceções, praticamente invisível e de fácil execução. Os custos de operação, portanto, são bem menores. Além de ser uma pena branda (multa e até seis meses de detenção), é precária a fiscalização. O negócio é tão 'bom' que traficantes de drogas e milicianos, que têm investido fortemente no setor imobiliário, em estados com Rio de Janeiro e Bahia, estão roubando areia barata e de má qualidade para construir condomínios residenciais em territórios dominados.



Areia está no alicerce do desenvolvimento econômico

 

Escrito por Melquíades Júnior,  13 de outubro de 2020

 

Segunda matéria-prima mais extraída na natureza é de uso essencial e está na base do crescimento civilizatório, daí a importância da exploração correta. Apesar dos problemas, o setor legalizado também combate a informalidade


Legenda: Canteiro de obras do programa Minha Casa Minha Vida no Município de Petrolina (PE). Uma casa de dois quartos leva, em média, 200 toneladas de areia em toda a sua estrutura Foto: Thiago Gadelha

 

Para qualquer lugar que se olhe, tem areia, ou o dióxido de silício, de que é composta. Está no alicerce da casa, na parede, na janela e no piso, mas também no espelho, no computador e até no creme dental. São mais de 30 bilhões de toneladas produzidas todos os anos no mundo (2,1 bilhões no Brasil) e vista como a "prima-pobre" da mineração, dada a sua abundância.

"Mas não há desenvolvimento urbano sem areia, por isso, temos tido uma preocupação com a informalidade", afirma Teobaldo de Sousa, vice-presidente do Sindicato das Indústrias de Mineração de Areia (Sindareia). Isto porque a produção sem os devidos registros tende a se tornar mais barata e compete diretamente com o setor legal, com areia de origem declarada.

Se a construção civil é importante pilar do desenvolvimento, a mineração de areia é sua base número um. "Num contexto de crise econômica, a construção retrai e a produção de areia também. Fosse declarada toda a areia, como acontece com o cimento, teríamos um retrato mais fiel tanto dos impactos positivos quanto negativos", explica Francisco Torres, pesquisador pela Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba.

Durante um ano, ele investigou o setor de mineração no vale do Rio Piancó, em seu estado, e fez retrato da informalidade: 90% da produção é informal e se dá por pequenos e médios mineradores. "São pessoas que, muitas vezes, não têm o ensino fundamental completo, extraem de qualquer jeito", explica.





Geração de empregos

Nos últimos cinco anos, o Sindareia tem provocado reuniões com o Governo Federal em busca de investimentos no setor. De acordo com estudo de impacto feito pelo Departamento de Indústria da Construção (Deconcic), da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), novas obras de desenvolvimento urbano e infraestrutura econômica em todo o País seriam capazes de gerar, "de imediato, dois milhões de novos empregos", reforça Carlos Auricchio, diretor do Deconcic.

O que se vê, no entanto, é uma histórica deficiência de fiscalização. A ilegalidade no setor de extração de areia tem níveis bastante diferentes, conforme a região do País, sendo Nordeste (86%) e Norte (85%) as regiões que elevam a média da ilegalidade no País, já que a produção do Sudeste, por exemplo, é 65%% declarada. É importante reforçar como é calculada a produção ilegal. Tanto no Brasil como no Exterior, essa estimativa é dada a partir do cruzamento de dados da produção declarada de cimento, fornecida pelo próprio sindicato nacional do setor. Na construção civil, para cada 1kg fornecido de cimento, outros 4kg de areia são necessários. No ano de 2018, foram produzidas 53 milhões de toneladas de cimento. Logo, estima-se na produção de 214 milhões de toneladas de areia, mas houve declaração de apenas 75 milhões de toneladas de grãos.

 

"Royalties" da areia

Diante desse cenário, outra consequência visível é: municípios com areais sem autorização nem licenciamento deixam de receber a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cefem). A alíquota de 1% parece pouco, mas cresce diante de um mercado com faturamento bilionário. Assim, tomado o valor de R$ 13 bilhões de produção de areia ilegal (dados de 2018), R$ 130 milhões de 'royalties' deixam de entrar todos os anos nos cofres públicos, sobretudo, municipais.

"No senso comum, a gente não tem noção da areia produzida no mundo. Ela chega a estar entre 32 e 50 bilhões de toneladas. É um valor muito alto. Então, dá para perceber o tamanho desse problema, de como ao ficar extraindo areia ilegalmente você destrói a natureza, destrói o meio ambiente que é o principal problema que acarreta. Além do lucro fácil para investidores criminosos. Ele chega simplesmente na beira do rio, coloca uma draga ali dentro começa a puxar pra dentro do caminhão, vai embora pra poder fazer a distribuição dele para as construtoras", descreve Ramadon, pontuando que, muitas vezes, as construtoras compram esse material sem saber que é de origem ilícita, porque eles pegam notas fiscais frias, fazem lavagem de dinheiro em cima desse material, e as construtoras, inocentemente, acabam comprando essa areia ilegal. É um trabalho muito forte no Brasil", explica o pesquisador Luís Fernando Ramadon, especialista em direito ambiental e, atualmente, uma das principais referências em estudos sobre a extração ilegal de areia dentro e fora do País - citado em artigos na Índia, China e Alemanha.

Como agente especial da Polícia Federal, Ramadon percebeu o impacto dos areais clandestinos e decidiu investigar. Alguns dados apontados nesta série, como valores atualizados de faturamento e níveis de ilegalidade, foram fornecidos com exclusividade à nossa reportagem.

 

Impactos

Não precisa haver ilegalidade para que toda e qualquer mineração tenha forte impacto ambiental. Ela é pautada na extração de recursos naturais não renováveis. Uma vez tirado o produto do solo, aquela matéria não irá se regenerar, pelo menos não nesta Era geológica. A retirada da mata nativa para extração de areia das margens de rios e lagoas provoca assoreamentos e deslizamentos. No entanto, o especialista em direito ambiental Pedro Ataíde, autor do livro "Direito minerário", pondera: "quando realizada de modo responsável, (a extração) pode contribuir para o desassoreamento. No Nordeste são comuns rios intermitentes. Onde a mata ciliar já não existe, a extração de areia, se realizada de modo responsável, pode contribuir para o desassoreamento dos rios. Não é o que acontece. Como a maior parte da extração é informal, não respeita parâmetros, limites".








"Grupo da Areia" desafia Polícias Federal e Militar

 

Escrito por Melquíades Júnior ,  14 de Outubro de 2020

 

https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/pais/grupo-da-areia-desafia-policias-federal-e-militar-1.2999391

 

Parque de dunas na Bahia é um dos maiores do Nordeste, mas está desaparecendo graças à ação de grupos armados que ameaçam promotor, ambientalistas e fiscais, enquanto roubam areia para depósitos em Salvador


 


Ao longo de milhares de anos, formações rochosas vão se decompondo até virarem os grãos de areia, que, soprados pelos ventos, também num longo processo, dão origem às dunas como as conhecemos hoje. Da noite para o dia, como num sopro, as dunas de Jauá desaparecem. Não porque são levadas pelos ventos. São os novos "capitães de areia" na Bahia de Jorge Amado.

Ao contrário dos meninos do romance, são homens feitos que agem na madrugadaroubando o sedimento milenar do Parque das Dunas de Jauá e Abrantes, do município de Camaçari até Salvador, 51 Km distante. Usam três ferramentas, a depender da situação: pás, para retirar; pistolas, para intimidar; e dinheiro vivo, para extorquir a Polícia que aparecer. Nem sempre conseguem.

Os caminhões-caçamba saem vazios, à noite, de Salvador, em comboios com até seis veículos. Para que o retorno seja garantido, contam com atuação de olheiros na vizinhança próximo ao local de extração. Todos são avisados pelo WhatsApp no GDA, o Grupo da Areia.

Como a fiscalização é frágil, o roubo segue regularmente, mas os ladrões têm uma incômoda pedra no caminho que atende pelo nome de Ana. Indignada com o extravio da areiadestruição da vegetação rasteira e o depósito de lixo deixado pelos traficantes no parque de dunas, Ana Maria Mandim, de 75 anos, jornalista e presidente da associação de moradores, grita, coloca o carro atrás dos caminhões, reclama com a Prefeitura de Camaçari, responsável pela Unidade de Conservação há 30 anos constituída apenas no papel, conforme o Ministério Público e a Secretaria de Meio Ambiente. Além dos roubos, percebe a ocupação irregular na região de dunas e sai fotografando tudo.



Ameaças

"Os caçambeiros vão lhe pegar!". A mulher para, pensa e guarda a frase na caixinha de ameaças acumuladas ao longo dos últimos 20 anos. "Você percebe que é pra lhe imobilizar, amedrontar, ficar imóvel e não fazer mais nada. Ameaça é pra isso aí. Me deixa vulnerável, mas eu pergunto: que vou fazer se tô vendo aquilo se repetir, vendo as caçambas saírem, a areia derramando? Chega uma hora de pensar o seguinte: temos que fazer alguma coisa".

O Grupo da Areia pensou o mesmo e fez: um recado mais contundente a Ana com tiros em sua casa, que atravessaram o portão e estilhaçaram na parede da garagem.

Era noite de São João, estava no escritório da casa, onde montou uma pequena redação de jornal comunitário feito somente por ela. Bem diferente das redações dos grandes jornais em que trabalhou nos anos 1980, em São Paulo. A jornalista pensou que se tratasse de fogos de artifício, até perceber também que havia uma "fogueira" no seu medidor de energia elétrica. "Fiquei cinco dias sem luz".

Não bastasse ser retirada de uma Unidade de Conservação, o que é proibido por lei, a areia é vendida em depósitos de construção civil em Salvador, dando origem a estruturas frágeis. Mas até que a parede recém-rebocada apresente avarias, o dinheiro já circulou na engrenagem produtiva do negócio da areia.

 



Medo

"Eu, nem ninguém, tem a coragem de Ana. Ela enfrenta, denuncia, cobra da Polícia, do Ministério Público. Essas pessoas que roubam areia na madrugada são perigosas, por isso a gente se preocupa com ela", diz "Luis", morador próximo à área de extração que, meses após nosso encontro em sua casa, liga com uma novidade: pela primeira vez, em seis anos desde que mora ali com a esposa, dormiram a noite inteira, sem barulho das dezenas de caminhões que ladeiam sua casa em direção ao crime ambiental da meia-noite às 4h da manhã.

Um reforço da Companhia de Polícia Militar Ambiental (Coppa) espantou para longe os traficantes de areia. Melhor dizendo, não muito longe: eles estão extraindo de uma outra parte do imenso parque de dunas, um dos maiores do Nordeste.

O tráfico de areia das dunas de Jauá é feito por diferentes pessoas, mas não se trata de ações individuais. Apesar de existirem alguns caçambeiros solitários, há uma forte atuação de empresários das lojas de construção. O principal deles é tão recorrente que se autointitulou "Dono das Dunas" de Jauá. Dono de uma loja de construção em Salvador, o homem comanda um grupo de caçambeiros que agem na madrugada dentro do parque. Ele próprio acompanha a retirada e mantém uma rede de contatos "importantes". Um dos moradores mais próximos da área da extração acompanhou sua conversa com um caçambeiro:

- Os 'homem' passaram pela estrada.

- É só um carro?

- É

- É dos nossos.


A referência era a uma guarnição da Polícia Militar que fazia ronda na rodovia ao lado do Parque das Dunas. "Nossos", nesse caso, é o pronome possessivo da corrupção, o que só aumenta o poder dos ladrões. Numa tentativa de coibir a extração ilegal, uma equipe de fiscais da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur) de Camaçari se aproximou da entrada principal do parque, mas antes que eles fizessem abordagem foram os próprios abordados. Sabendo que não andam armados, eles, sim, os caçambeiros expulsaram os fiscais.

Para que o negócio da areia ilegal prospere, com ou sem intimidação, é necessária uma série de "vista grossa": na retirada da areia, no trânsito pela rodovia e na venda sem nota fiscal ou ausência de zelo para conferir sua falsidade. Nem sempre a primeira etapa funciona e tem sido assim no comando do Major Amílton Sousa, da Companhia de Polícia de Proteção Ambiental (Coppa).

Com operações mais frequentes, a Coppa está reduzindo o roubo numa das áreas do parque, para alívio de Ana Mandim, até aqui a guardiã da areia do Parque de Dunas.

Numa dessas operações da Polícia Federal foi preso Fernando, em agosto de 2019, o "Dono das Dunas". Na investigação, a PF concluiu que um agente da 26ª Delegacia de Polícia Civil de Camaçari era informante das operações da Polícia local. O caso tramita na Justiça Federal, e o "dono" obteve habeas corpus.

 

 

MPF, MP e polícias no combate

Apesar do alcance da ilegalidade, existe uma ação que mais tem combatido a extração de irregular de areia nos estados: o esforço conjunto do Ministério Público Federal, com apoio da Polícia Federal, e do Ministério Público nos estados, apoiados pelas polícias ambientais. Somente esse esforço tem feito reduzir a exploração ilegal no Parque das Dunas.

“A gente sabe que é um trabalho difícil, mas as ações têm gerado resultados. Não é só pegar aquele que está na ponta, mas quem mais se beneficia desse mercado ilegal. Estamos mais perto disso”, afirma Ronaldo Cunha, chefe da Delegacia de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico (Delemaph), da Polícia Federal na Bahia.

O MPF realizou mais de 210 inquéritos em cinco anos. Em Camaçari, o Promotor de Justiça Luciano Pitta sofreu perseguições na estrada e ameaças por telefone depois que passou a investigar o desmonte nas dunas de Jauá. “A Unidade de Conservação só existe no papel, pra inglês ver”, reclamou.






Tráfico de areia: Cadastro de infratores é desafio para estados, aponta levantamento


Escrito por Melquíades Júnior,  17 de Outubro de 2020

 

https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/pais/trafico-de-areia-cadastro-de-infratores-e-desafio-para-estados-aponta-levantamento-1.3000676

 


Reportagem tem acesso às planilhas dos órgãos ambientais para os registros de multas por extração ilegal de areia. Material identifica estados campeões e a forte reincidência dos infratores



Legenda: Extração ilegal de areia no Rio Curu, litoral Oeste do Ceará. Margens foram desmatadas e o assoreamento tornou rio raso e violento no período chuvoso

Foto: Thiago Gadelha



"Infelizmente, não temos esse tipo de informação no cadastro de infrações ambientais. As autuações ocorrem, mas não temos como especificar se foi areia". A resposta da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de Alagoas é uma realidade no País quando é para falar de areia. Se é difícil entender a dimensão do tráfico desse minério e, ainda mais, saber que se trata do maior crime ambiental no Brasil, esse desafio também chega aos órgãos fiscalizadores nos Estados.

Em alguns casos, a extração ilegal é autuada, mas por outros motivos: ocupação irregular, desmatamento, poluição das águas, ficando extração de areia nas entrelinhas (quando há) da planilha. Onde o dado está posto, acessamos, reunimos e traçamos um ranking das autuações.

As multas variam das dezenas de reais, em maior quantidade, aos milhões (minoria), mas um outro dado chamou mais atenção do que o valor: a reincidência.

Alagoas, Amapá e Acre admitiram não ter em seus registros de infração a extração ilegal de areia. Outros seis Estados prometeram atender ao pedido, descumprindo em oito meses de espera.

 

Legenda: Máquina destrói a mata ciliar que resta no Rio Curu, entre Paracuru e Paraipaba (CE), para venda de areia

Foto: Thiago Gadelha



Operação de guerra

O Exército brasileiro foi chamado para uma operação sigilosa que começaria logo na madrugada do dia 10 de dezembro de 2019 e duraria cinco dias. O Comando Militar Leste precisaria levar materiais explosivos para dar fim a um sistema de silos, equipamentos que fazem a dragagem de areia de lagoa próxima a uma reserva ecológica em Duque de Caxias (RJ).

Foi com esse apoio militar que o Instituto Estadual do Meio Ambiente) do Rio de Janeiro atendeu recomendação do Ministério Público Federal para acabar com areais clandestinos que operavam em escala industrial. A areia roubada, por sua vez, abastecia os mercados imobiliários tanto formais quanto informais.

"É uma verdadeira rede de clandestinidade, que só com uma outra rede, a de combate, será derrotada. Percebemos que há verdadeiras organizações criminosas com uma só aparente legalidade", explica o procurador da República Júlio José Araújo Júnior. Dinamitar a engrenagem foi a saída, já que nem mesmo as prisões, três meses antes, tinham cessado a atividade.

Alguns empreendimentos assumem uma postura de legalidade: pedem autorização de pesquisa junto à Agência Nacional de Mineração (ANA), e pasam a atuar sem mesmo conseguirem uma cessão de lavra inicial à atividade. Com tanta irregularidade, a alternativa dos fiscais foi seguir os traficantes colecionadores de multas.

Entre 2008 e 2019, o Estado do Rio de Janeiro aplicou R$ 10 milhões em multas por extração ilegal de areia. As duas maiores multas foram destinadas a uma mesma empresa, no município de Armação dos Búzios. Valor total em multas: R$ 1,9 milhão - metade em setembro de 2016 e a outra dois meses depois. A empresa já estava no radar do procurador da República Leandro Botelho Antunes. O representante do Ministério Público Federal recomendou buscas, apreensões e prisões do grupo envolvido na extração de areia em grande quantidade, com maquinário pesado. O material era usado para a construção de casas de veraneio próximas ao local.

"Uma das características desse mercado ilegal é que o consumo se dá próximo da extração, porque um grande deslocamento torna menos rentável", explica Francisco Torres, pesquisador da extração de areia pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba, onde só foram apontadas 23 pequenas ocorrências em cinco anos, apesar do uso indiscriminado de areia em rios na Região Metropolitana de João Pessoa.


Infrações

O campeão de multas, dentre os estados verificados, está em São Paulo e coincide com o maior desastre ambiental que ocorreu nos últimos cinco anos. A empresa foi multada em R$ 5 milhões uma semana após o rompimento de uma barragem de rejeito de minério de areia, provocado exatamente por uma outra extração ilegal.

O rejeito poluiu o Rio Paraíba, no município de Jacareí, e deixou mais de 200 mil famílias desabastecidas. Inicialmente, a empresa foi multada em R$ 11 mil; mas o alcance da gravidade fez a Justiça rever os valores. A partir da planilha que obtivemos, a mesma empresa possuía outras 43 infrações. Todo o Estado de São Paulo responde por R$ 35 milhões em multas.

O ranking, a partir do levantamento, é formado por São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Bahia. As multas têm um montante de R$ 122 milhões entre 2015 e 2019.

No Ceará, a infração rendeu em pouco mais de R$ 200 mil em multas entre 2001 e 2019. "O importante é saber quem está organizando a compra. Da mesma forma que o tráfico de drogas só avança se alguém faz o intermédio da compra, o roubo de areia precisa de quem vai unir aquele que extrai ao consumidor final. Estamos de olho nas margens dos rios", explicou um fiscal da Semace que pediu para não ser identificado.

Em janeiro deste ano, uma operação noturna, apreendeu em flagrante três caminhões-caçamba e uma retroescavadeira no leito do Rio Jaguaribe, no município de Tabuleiro do Norte. Com apoio da PM, fiscais autuaram dos condutores de caçamba aos responsáveis pela extração.

 

Areia por voto

Uma prática recorrente, sobretudo, em pequenas cidades, é o oferecimento de areia para atender um “favor”, que, em período eleitoral, pode ser descrito como a compra de voto. Dois donos de loja de construção, em Parnaíba, no Piauí, e em Russas, no Ceará, admitiram como é a movimentação na loja em períodos eleitorais.

“Quando faltam duas ou três semanas, geralmente alguém que trabalha pra um candidato liga com uma lista de encomendas. ‘Deixe uma carrada lá em fulano, outra lá em cicrano’. Eu não sei se o candidato ganha o voto, mas a gente não perde a venda”, explica ‘Firmino’, de Russas.

Dez meses após nossa visita à Parnaíba, retomo o contato com Valdir, dono de loja de construção. Ele comemora que “quando não é telha, é tijolo”, mas pondera: “o povo não é mais besta. O candidato pensa que areia ainda compra voto. Eu acho que não. Tem que ser muito caminhão”.





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